Jovem surdocego cria campanha para construir casa própria em Itaguaí
Quando o relógio chegar à meia-noite do dia 31 de dezembro, Leonardo da Rosa Senra deverá renovar seus votos de um próspero ano novo pedindo o mesmo que qualquer pessoa. Por exemplo, paz, amor, saúde… O que não haverá necessidade de pedir, em contrapartida, são resiliência e determinação, que lhe sobram.
Mas mesmo esbanjando tais capacidades, este jovem surdocego de Itaguaí, também como qualquer pessoa, não consegue realizar seus sonhos sozinho. Por isso, mantém uma campanha na Internet para arrecadar recursos a fim de concluir a construção de uma casa própria para a família.
A colaboração de terceiros se faz fundamental, em primeiro lugar, pela condição do jovem de 32 anos – que nasceu em Paracambi, mas mora em Itaguaí desde 1 ano de idade. Em conversa por Whatsapp com o ATUAL, Leonardo esmiuçou os obstáculos que a deficiência sempre lhe impôs. Mas nem precisaria entrar em detalhes, pois somente as circunstâncias nas quais a entrevista ocorreu já dão uma noção.
SEM DIAGNÓSTICO
Leonardo, que completa 33 anos em 2 de janeiro, sofre com a perda progressiva da audição e da visão desde que nasceu, mas em todos estes anos, nunca conseguiu saber o que realmente desencadeou a deficiência: “Fiz centenas de exames como tomografias computadorizadas e ressonâncias, mas os médicos não conseguiram chegar a um diagnóstico”, lamenta Leonardo, que também não sabe precisar o quanto dos sentidos lhe resta.
Mas o estágio da deficiência já é tão avançado que ele pediu que a entrevista não acontecesse por ligação, pois não escuta nada praticamente – apesar das sessões de fonoterapia e do implante coclear (popularmente conhecido como ouvido biônico), que não surtiu o efeito desejado por falta de um suporte adequado.
Por isso, a entrevista se deu por escrito, uma vez que ele consegue aplicar um zoom de 500% na tela 22 polegadas do computador para poder ler as perguntas.
RECURSOS ESCASSOS
Foi assim que Leonardo contou à reportagem – com esmero e boa escrita, apesar das adversidades – que a única fonte de renda que tem na atual residência é o Benefício de Assistência Social oriundo da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), do Governo Federal.
É com esse auxílio que ele sustenta a família, já que a mãe é analfabeta e não trabalha desde que ele nasceu, enquanto o pai está desempregado e não consegue mais os bicos que fazia antes do início da pandemia. Sua única irmã é casada e vive com os sogros.
O que sobra do benefício vai para a construção da casa, mas, obviamente, não chega perto de ser o suficiente para acelerar as obras que se arrastam desde 2015: “Somente as vigas necessárias custaram R$ 1,3 mil”, contou Leonardo.
A CAMPANHA
Por estas dificuldades, Leonardo decidiu abrir o coração e lançar na Internet uma campanha para arrecadar recursos. Materiais de construção, pontua ele, também são bem-vindos: “Por exemplo, precisamos comprar telhas, portas, janelas, pisos… Seria ótimo receber doações de materiais também”, comenta Leonardo, que não traçou um valor como meta.
Em um ano – a campanha começou em janeiro de 2022 –, Leonardo conseguiu algo em torno de R$ 3 mil, o que rendeu material apenas para levantar colunas e paredes. Ou seja, ainda falta bastante coisa.
Até porque, mesmo que a ideia seja construir uma casa de tamanho médio (com dois quartos e um banheiro), o imóvel deve ser adequado para receber um morador surdocego: “Penso em uma casa média e adaptada para o meu futuro. Os médicos alegam que ficarei definitivamente cego um dia, já que perco um pouco da visão a cada ano”.
INUNDAÇÕES E FAMÍLIA
Além de adaptada para hospedar com segurança uma pessoa com deficiência visual, a residência nova também terá que ser dotada de um outro tipo de prevenção: contra inundações, algo comum em Itaguaí. Inclusive, Leonardo lembra que em 2019 fortes chuvas alagaram as obras, o que provocou uma mudança de planos.
Mesmo com um alicerce de cerca de 70 cm, as águas tomaram a construção: “Isso nos forçou a levantar logo uma laje e levar os cômodos para cima”, explica Leonardo, lembrando uma outra inundação, só que na casa atual: “Perdemos muitas coisas. A água subiu mais de 50cm dentro do imóvel”.
Inundações, a propósito, são somente um dos motivos que fazem Leonardo alimentar o desejo de deixar a casa atual e se deslocar alguns metros para viver na nova – ele mora em Piranema e constrói o futuro lar em um terreno próximo, no mesmo bairro.
A outra razão é uma questão interna de família. Leonardo recorda que há 18 anos mora com os pais em um terreno cedido por uma tia. Idosa e sozinha na época, ela desejava pessoas por perto.
Mas após o falecimento da tia, segundo Leonardo, alguns filhos dela deram início a uma pressão para que o jovem e seus pais deixassem o local: “Ameaçaram ir à Justiça para solicitar uma ordem de despejo. Não temos para onde ir, e esses transtornos alimentam meu sonho de ter minha casa”.
PARTO COMPLICADO
A questão com os filhos da tia, porém, parece a menor das barreiras que Leonardo vem enfrentando desde que nasceu. Sem divulgar o nome do hospital de Paracambi (e de outras instituições citadas ao longo da entrevista) por receio de ser processado, ele conta que seu parto foi complicado, e a mãe, vítima de “negligência e abuso” por parte da equipe médica: “O atendimento veio somente sete horas após ela ter entrado em trabalho de parto”.
Tais circunstâncias, aliás, não estão descartadas como determinantes para a perda de visão e audição: “Os profissionais de saúde levantaram hipóteses. Dentre elas, uma condição rara com poucos casos registrados e ainda desconhecida pela medicina. Outra possibilidade são episódios relativos ao parto, que poderiam ter causado lesões nos meus nervos sensoriais”.
Anos depois, aos 11, veio uma outra pancada. Ele seguia bem em uma escola de Itaguaí, quando uma diretora teria forçado sua saída ao alegar que ele “atrapalhava os amigos e atrasava os professores”.
Este episódio o fez se sentir magoado pela primeira vez na vida por ser portador de deficiência: “Quando a humilhação vem de outra criança, a gente releva. Mas de um adulto, o impacto é poderoso. Fiquei tão deprimido que me recusei a brincar com outras crianças por dois anos. Fazia tudo para não sair de casa”, relembra Leonardo, que só voltou a estudar aos 14 anos.
PAIXÃO PELOS LIVROS
A esta altura, Leonardo já nutria um gosto (ou um vício, como o próprio define) pela leitura. Isto mesmo que já sofresse – por ironia do destino – com uma limitação para enxergar. E nesta mesma época, começou a desenvolver uma outra paixão, que o acompanha até hoje: escrever. “Participei três vezes do concurso Jovens Poetas, da Prefeitura de Itaguaí, e venci todas”, se orgulha Leonardo, que dá palestras em escolas públicas para estimular em alunos o hábito da leitura.
Ainda sobre ler e escrever, Leonardo busca um outro sonho, além de concluir a casa nova. Ele diz que já tem conteúdo escrito suficiente para lançar mais de um livro. E uma dessas publicações seria especial, com um resumo da sua vida: “Muitos me olham e mal imaginam o caminho de turbulências, conquistas, ascensões e quedas que já vivenciei. Adoraria compartilhar com todos minha história”.
Fora ser escritor e ter a casa própria, ele tem ainda um terceiro sonho: “Entrar para a faculdade”, responde o jovem, lembrando as cinco tentativas de fazer o Enem e alegando ter sofrido com exclusão por parte de órgãos federais: “O INEP e o MEC me negaram em todas as participações uma prova ampliada adequadamente para que eu conseguisse ler com o pouco de visão que tenho”.
COMO DOAR
Quem se interessar pode fazer doações por meio da chave PIX 21996033423 (Leonardo da Rosa Senra). Este também é o número de Whatsapp que Leonardo disponibiliza para quem quiser saber mais sobre sua história.