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Mangaratiba: instituto de origem africana denuncia intolerância religiosa de pastor

Representantes do Instituto Lucia Castilho, entidade ligada à religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé, com sede em Mangaratiba, alegam ter sido vítimas de intolerância religiosa. O autor seria o pastor evangélico Wilson Félix.

Por videoconferência, o ATUAL conversou com três integrantes do instituto: a ialorixá Bel d’Oxum, o babalorixá Roberto de Osalá e a presidente Leila Avilez, que esteve na 165ª DP (Mangaratiba) em 6 de fevereiro para registrar ocorrência de crime em razão de religião (intolerância e racismo religiosos).

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De acordo com o trio, o pastor Wilson Félix, em vídeo que circula na Internet, aparentemente pregando em sua igreja, ataca o evento anual Águas de Axé, que teve sua terceira versão realizada no dia 27 de janeiro, na Praia do Saco, pelo Instituto Lucia Castilho.

Roberto  descreve que no vídeo o pastor “afirma que está triste, porque vivemos um tempo de guerra em Mangaratiba, alegando que nós queremos acabar com as praias…”, disse o babalorixá que alega conhece o pastor, de quem foi vizinho de porta durante anos.

Uma das ações do Instituto Lucia Castilho é a distribuição de alimentos (Arquivo pessoal)

Bel – irmã de Lucia Castilho, que dá nome à associação, falecida em 2020 – questiona a abordagem do pastor: “Ele convoca a igreja para uma guerra espiritual, mas que guerra seria essa? A gente propaga a paz”, exclama a ialorixá, destacando que o instituto tem como atividades, desde o ano passado, promover eventos culturais e ações sociais, como distribuição de alimentos, além de atendimento jurídico e espiritual gratuitos.

O VÍDEO

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A reportagem do Atual teve acesso ao vídeo – assista um trecho abaixo.

Nele, vê-se, no alto de um palco, o pastor Felix. Ele fala em “tempo de chorarmos” e abertura de “brechas para que o diabo entre na minha vida, na minha família e na minha cidade”. Em seguida usa o termo “notícia triste” para se referir à lei municipal que estipula o dia 20 de janeiro como o Dia do Evento Águas de Axé no calendário oficial de Mangaratiba – a edição 2024 só ocorreu no dia 27 porque o instituto já tinha outros compromissos para o dia 20 antes do sancionamento da lei.

Nesse momento, sobra até para o prefeito Alan Campos (PP), o Alan Bombeiro, a quem o pastor chama de “crente desviado”.

Ainda no mesmo vídeo, Wilson Félix afirma que “daqui a pouco, a praia de Jacareí a praia de Mangaratiba vai virar igual a praia de Sepetiba; vai virar igual a praia de Coroa Grande. Você vai em Coroa Grande, e tem uma Iemanjá grandona na praia. É uma praia que não presta mais. Sepetiba virou uma lama porque botaram uma outra entidade. Onde eles colocam isso, há uma degradação, uma destruição”.

Após essa fala, ele questiona: “Onde está a igreja do Deus vivo para se posicionar; onde está a Igreja para chorar e dizer ‘Senhor, tenha misericórdia da nossa cidade?’”. E complementa: “Nós estamos em guerra… o nosso município está em guerra… mas guerra espiritual”.

A reportagem procurou o pastor para buscar um posicionamento sobre o conteúdo do vídeo e a acusação de intolerância religiosa. Wilson Félix, no entanto, afirmou que prefere se pronunciar em uma entrevista presencial porque apenas enviar “uma nota fica muito vago”. Ele sugeriu dar seu posicionamento em uma oportunidade futura.

Disse ainda que precisaria de mais tempo para elaborar uma nota e agradeceu a oportunidade pelo espaço.

SEM RETRATAÇÃO

Passado um mês do episódio, o porquê do ataque ainda intriga o trio: “Por ele ser líder de uma congregação tão grande, eu não esperava uma atitude dessa. Mas acho que tem algum interesse político, senão ele não faria. Só pode ser”, supõe Roberto, destacando que o pastor nunca demonstrou arrependimento e que espera dele uma retratação pública com um pedido de desculpa.

“Ele nunca nos procurou, nem para retratação. Eu esperava uma nota pública com um pedido de desculpa”

Babalorixá Roberto de Osalá

Bel ressalta que nunca quis buscar satisfação com Wilson Félix porque não acredita que o pastor tenha algum arrependimento do que disse, e que prefere seguir o caminho da lei para promover a justiça.

RECUSA POLICIAL

Além do baque com o vídeo, Dona Leila garante ter ainda enfrentado resistência na delegacia ao tentar registrar a ocorrência: “De primeira mão, eles [policiais civis] não queriam fazer o registro. Me disseram que não existia intolerância na fala do pastor. E olha que eles viram as imagens”.

Segundo a presidente do Instituto Lucia Castilho, foi preciso retornar à 165ª DP com uma advogada para que os agentes registrassem a ocorrência. A reportagem procurou a Polícia Civil para tratar do assunto.

Dona Leila afirma que só conseguiu registrar a ocorrência na 165ª DP com a presença de uma advogada (Arquivo pessoal)

Em nota, a assessoria de comunicação da corporação afirma que não houve negativa inicial por parte da equipe de plantão. O pronunciamento detalha ainda que foi o filho de Dona Leila que compareceu à delegacia, onde “recebeu orientações de como proceder, sendo posteriormente confeccionado o registro de ocorrência”.

Além disso, a Polícia Civil afirma que disponibiliza a Ouvidoria em casos de reclamações, e que todos os relatos são “analisados e apurados”.

Sobre o desenrolar das investigações, a corporação informa que “diligências estão em andamento para apurar os fatos”. Enquanto isso, mais de 20 dias após o registro do caso, Dona Leila aguarda novidades: “Até agora não tivemos nenhum retorno, não nos falaram nada. Mas a advogada orientou que esperássemos mais alguns dias depois do Carnaval”, explica a presidente da instituição.

A Yalorixá Bel d’Oxum (D) e o Babalorixá Roberto de Osalá (E), ao lado de Fabio Rodrigues, secretário do instituto (Arquivo pessoal)

CASOS NÃO REGISTRADOS

Assim como Dona Leila, nos anos de 2022 e 2023, apenas seis pessoas registraram ocorrência na 165ª DP por Ultraje a Culto e Impedimento ou Perturbação de Ato a ele Relativo, de acordo com relatório do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

O baixo número, porém, não reflete a quantidade de manifestações de intolerância religiosa que ocorrem no município, segundo Roberto. Ele revela que nunca foi alvo, mas conhece vítimas: “Em Mangaratiba, filhos de santo sofrem preconceito na escola, muitos perdem trabalho… É comum, infelizmente”.

Dona Leila, por sua vez, recorda ter passado por uma situação constrangedora: “Há 10 anos, eu passei por uma igreja católica e decidi entrar. O padre pediu para eu me retirar por causa da minha conta. Ou eu tirava ou não assistiria à missa. Não discuti, simplesmente impus não sair da igreja”.

Já Bel cita a dificuldade que Dona Leila teve para denunciar o pastor na 165ª DP como um dos motivos que explicam um número baixo de casos registrados e que a resistência na delegacia para registrar a queixa de racismo é grande: “tentam nos convencer de que o ato não está acontecendo. Então, as vítimas acabam não indo (na delegacia). Nem todos têm advogado como o instituto”.

A ialorixá, frequentadora do culto Ifá, cita ainda que costuma sofrer preconceito religioso na jornada profissional: “Trabalho no ramo gastronômico e uso Idé Ifá (também chamado de conta ou guia, a depender da religião). E como esse adereço não se tira, por ser uma forma de proteção e identificação entre os adeptos do Ifá, sou muito perseguida. Dizem que é por causa da vigilância sanitária, mas sei que não. Me imponho”.

Bel d’Oxum com seu Idé Ifá no pulso esquerdo, símbolo de proteção e identificação (Arquivo pessoal)

MEDO E RECEIO

Enquanto aguardam um posicionamento das autoridades, os três convivem com o medo de novos ataques – inclusive, físicos – e retaliações por conta da queixa prestada na delegacia, de novos eventos e até por essa entrevista. Isso porque eles veem o pastor Wilson Félix como um líder religioso com muitos seguidores – embora não saibam estimar a quantidade de frequentadores assíduos da igreja onde ele prega. 

Dona Leila confessa: “Não sofremos mais nenhum ataque desde janeiro, mas do jeito que ele incitou dentro da igreja, por ser líder, fico com o pé atrás. O homem faz a cabeça dos outros. Tenho medo de que algum louco venha até mim para me agredir”.

“O homem faz a cabeça dos outros. Tenho medo de que algum louco venha até mim para me agredir”

Leila Avilez, presidente do instituto

Também receosa, Bel volta a mencionar sua caracterização para explicar o motivo de temer agressões: “Ando toda paramentada, e vou assim ao mercado, à escola do meu filho… Não tenho vergonha das minhas vestes, do meu fio de conta… Mas fico com medo”.

Roberto é mais um a acreditar que a caracterização típica da religião possa motivar um ataque: “Somos pessoas expostas. Também ando paramentado e também não tenho vergonha. O que tenho é orgulho da minha fé e religião. Mas quando um líder como ele incita o ódio, há os fanáticos que podem partir para a agressão, para a depredação”.

Dona Leila (de azul), presidente do instituto, durante o evento Águas de Axé (Arquivo pessoal)

“CAMINHO DO AMOR”

Apesar do medo e do ataque por vídeo, entretanto, eles garantem que o Instituto Lucia Castilho não vai interromper as atividades, nas quais temas como homofobia, racismo e saúde da mulher ganham luz – assim como acontece há cinco anos, desde que Lucia iniciou a entidade com o nome de ACRAB (Associação de Avivamento da Cultura e da Religiosidade Afro-brasileiras).

Bel ressalta que, apesar dos preconceitos, quer ver o instituto seguir em frente com sua missão: “Nossa religião é muito perseguida. Mas nossa intenção é propagar a paz e não o ódio”.

Roberto salienta que uma das premissas do instituto é chamar a atenção para aspectos que demandam mais preocupação do que a religião alheia: “Vamos nos importar com o preconceito, a fome, o desamor… Vamos ajudar o próximo. É isso o que pregamos, mesmo sendo demonizados erroneamente. Pregamos acolhimento e paz. E vamos pelo caminho do amor”.

Ele encerra assegurando, ainda, que o instituto sai fortalecido do episódio: “É uma questão de honra prosseguir com as atividades. Estamos cada vez mais forte. Eles que lutem”.

ERRATA: Inicialmente, o ATUAL informou que o pastor Wilson Félix seria representante da 1ª Igreja Apostólica Cristã de Conceição de Jacareí. Na ocasião, a reportagem levou a denúncia do Instituto Lucia Castilho à igreja, por meio de redes sociais, mas não obteve retorno.

Já no último dia 12 de março, Josy Negrin, secretária de Relações Públicas da Igreja Apostólica Cristã, procurou o ATUAL para informar que a instituição não possui mais associação com Wilson Félix.

Por nota, a secretária admite que Félix já foi pastor “em uma de nossas igrejas, mas desligou-se em 2022, por divergências internas”. A Apostólica Cristã destaca ainda que não reconhece mais o título de Pastor Evangélico de Wilson Félix.

A secretária afirma que atualmente o pastor é vinculado à Igreja Apostólica Central.

A nota termina com a observação de que a “Igreja Apostólica Cristã se reserva o direito de pregar sua doutrina, independentemente da opinião de qualquer outra religião. No entanto, defende os Direitos Individuais, por meio dos quais ninguém deve ser recriminado, atacado ou ter seus direitos civis cerceados por motivos de crença”.

Luiz Maurício Monteiro

Repórter com mais de 15 anos de trajetória e passagens por diferentes editorias, como Cidade, Cultura e Esportes.

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