‘Senão, o quilombo morre’, diz jovem premiada por homenagem à Ilha da Marambaia
“Meu grande sonho é realizar minhas muitas metas”. Quem ouve assim, pode achar que a declaração de Iane Lima é só mais um exemplo de cabeça de jovem que quer abraçar o mundo com os próprios braços. Mas não parece ser o caso. Aos 20 anos, a mangaratibana mostra que sabe o que quer e já colhe os frutos por isso. No início de setembro, recebeu um prêmio da Fundação Palmares – órgão federal para promoção da cultura negra – por um trabalho audiovisual em que exalta a comunidade quilombola da Ilha da Marambaia – área com um total de 81 mil quilômetros quadrados que pertence ao município de Mangaratiba. Tal iniciativa, inclusive, tem tudo a ver com uma de suas “muitas metas”.
O vídeo de Iane faz um resgate da história do quilombo que existe naquela região desde, pelo menos, o século XVI – segundo pesquisas da própria produtora cultural. E o curioso é que muita gente, ao ouvir “Marambaia”, pensa logo na Marinha do Brasil, que passou a usar a área para treinamento militar apenas em 1908, quando fundou a Escola de Aprendizes-Marinheiros.
A propósito, quilombolas e militares – únicos dois grupos habitantes da ilha – chegaram a um acordo em 2014, com 12 anos de litígio, depois de assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que assegura tanto as atividades das forças armadas quanto a permanência e integridade da comunidade – que conta hoje com 456 moradores, entre quilombolas e cônjuges, muitos em situação de vulnerabilidade.
PÚBLICO-ALVO JOVEM
Uma comunidade quilombola atual consiste em manter as tradições de seus antepassados. Ou seja, as pessoas que chegaram àquela determinada região em fuga da escravidão.
A atuação de Iane segue exatamente nesse sentido, o de manter vivas as danças e as atividades peculiares de artesanato, cozimento e cultivo. E ela já sabe até com quem deve conversar: “A gente tenta resgatar a cultura do quilombo de maneira moderna e juvenil para ver se alcança as gerações de hoje, que não se interessam em contar essa história. A gente precisa trabalhar nisso, senão o quilombo morre”, diz a jovem, em entrevista para o ATUAL.
E olha que que essa gana toda de manter acesas as tradições do quilombo da Marambaia parte de alguém que passou parte da infância fora da ilha – sua família saiu de lá quando ela tinha cerca de dois anos e retornou cinco anos mais tarde. Mas ter nascido lá, com certeza, foi um fator determinante. E, por fim, a influência da família só fez o apego à terra se fortalecer definitivamente: “Aprendi a amar minha cultura desde sempre. Meus pais me passaram isso, dançando, participando das atividades… Minha história é quem eu sou”, filosofa a jovem, que mora com pai, mãe, irmão e irmã.
PARCERIAS
Mas Iane sabe que só seu orgulho não seria suficiente para faturar o prêmio “Contando nossa História” – que rendeu uma quantia pouco superior a R$ 6 mil, com os descontos. Foram importantes também o suporte da Fundação Mário Peixoto, instituição responsável pela gestão da Cultura em Mangaratiba, que ajudou a jovem na parte burocrática, como consulta ao edital, juntamento da documentação e visitas à sede da associação dos moradores; e também a parceria do Grupo Pele Negra No Poder, do qual ela é representante.
São, basicamente, três as frentes nas quais o Pele Negra atua na Marambaia: meio ambiente, cultura e história. E foram estas duas últimas as principais motivadoras da criação do documentário: “Quando fui fazer as pesquisas, vi que faltava muita coisa da história do lugar. Então, decidi ir atrás e pegar desde os primeiros registros. A gente ouve falar mais da Marinha na ilha, mas não do que veio antes. E o que fizemos foi isso: vir desde os primeiros registros até hoje”, explica.
DIFICULDADES
O valor que Iane dá à comunidade quilombola da Ilha da Marambaia e a sua determinação para exaltá-la são evidentes. Só não as impedem de pensar em um dia deixar a região. Planos para isso, inclusive, já existem: “No mês que vem, devo vir a Itaguaí procurar um lugar para morar”, revela a jovem, que no momento da entrevista por telefone estava na cidade vizinha, onde tem parentes.
Os principais obstáculos que a fazem pensar em se mudar estão intimamente ligados. Um é a distância, e o outro, a falta de oportunidades, que não chegam exatamente por se tratar de um lugar que fica longe de um desenvolvimento mais próximo do ideal: “As coisas são complicadas na ilha. Principalmente, o acesso a cursos e trabalho. Difícil me ver crescendo profissionalmente lá. Até porque os trabalhos surgem mais no continente”, detalha.
Mas, na verdade, a escassez de possibilidades não começou na fase adulta para Iane – assim como para todos que são ou já foram jovens na ilha: “Não tem ensino médio. Quando estudava, tinha que acordar às 3h porque o embarque da Marinha é muito cedo. Estudava em Muriqui e saía ao meio-dia. E aí tinha que esperar até 18h para voltar, novamente por causa do horário do barco da Marinha. Ficava cansativo. Muita gente desistiu”, lembra a jovem, que, mesmo com as adversidades, prefere ser ponderada quanto a deixar a região: “Sair, sim, mas nunca me afastar de vez”.
PROJETOS FUTUROS
Se afastar de vez, não. Mas a despedida, realmente, parece inevitável, afinal, ela tem muitas metas a alcançar (lembra?), e a maioria delas, de fato, está fora dos limites da Marambaia. Por enquanto, só o seu trabalho atual está lá: um cargo de auxiliar de ensino, na Escola Municipal Levy Miranda, unidade de ensino batizada em homenagem a um dos fundadores da escola de pesca da ilha.
Fora isso, atua ainda como modelo, trancista e designer de moda. Mas é pouco. Muito pouco!
Além destas múltiplas atribuições – e, claro, da batalha em prol da cultura e da história do quilombo – ela estuda. Se inscreveu no vestibular da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), por meio da bolsa para comunidades quilombolas, para os cursos de Sociologia e História.
Mas enquanto essa nova porta não se abre, ela se vira como pode. Apesar da falta de tempo, até pelo longo deslocamento, ela tem conseguido se dedicar ao ofício de modelo comercial em uma agência na Barra da Tijuca. Só não a diga para morar em meio à agitação do bairro da Zona Oeste carioca, afinal, cria da Ilha da Marambaia prefere a calmaria: “Não curto barulho. É melhor a tranquilidade”, encerra.