Carta misteriosa e roubo de notebooks motivam criação de CPIs na Câmara
Interpretar os movimentos políticos em Itaguaí é sempre um grande desafio. O leitor assíduo há de concordar: entre a primeira sessão legislativa do ano (na quinta-feira, 3) e a segunda (terça-feira, 8) alguma coisa aconteceu. Talvez até mesmo algumas. De uma sessão composta de discursos elogiosos e sem grandes assuntos à sessão seguinte, com anúncio de duas comissões parlamentares de inquérito à vista, o leitor que acompanha a política da cidade percebe que uma grande tempestade se forma no horizonte.
E o que poderia ter acontecido? Difícil ter certeza. Mas é certo que a Câmara, que viveu os últimos meses sem sobressaltos, com uma aprovação de indicações ao Executivo ali, outra aprovação de Moções acolá, mudou. E mudou com bastante barulho, a julgar o discurso de abertura da segunda sessão proferido pelo presidente Gil Torres (PSL).
O que motivou a nova disposição do presidente: uma carta que teria sido entregue pessoalmente na sede da Câmara, endereçada a Torres, e que mais uma vez o associa ao comando da Polícia Militar e suas ações na localidade conhecida como Sem Terra (onde, aliás, houve na tarde e noite de terça-feira, dia 8, intenso tiroteio).
Indignado, Gil Torres repete que nada tem a ver com o que a polícia faz no local, que jamais deu ordens ou fez pedidos nesse sentido. E entendeu que a carta é uma ameaça. O assunto não é novo: ele frequentou as redes sociais há cerca de um mês e meio, e na ocasião o presidente já tinha desmentido tais boatos. Mas, pelo que se vê, eles persistem. Por essa razão, e por entender que a correlação das atividades da polícia com o trabalho do vereador é perigosa, Torres incitou os colegas vereadores a abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar esses fatos.
“Já comuniquei ao Ministério Público, já fiz um registro na Polícia Civil, aos órgãos competentes, o Batalhão, naquele momento, para saber o que está acontecendo. Já vim à tribuna, já falei que não tenho ingerência sobre a polícia. Eu não mando na polícia. Nenhum vereador do município de Itaguaí, prefeito, qualquer outra autoridade manda na polícia”, disse o presidente.
Ele disse também: “Tudo muito vago, não sei se é uma politicagem o que está acontecendo. Não tenho medo de vagabundo, não tenho medo de polícia vagabundo e não tenho medo de político vagabundo. Senhores, uma sacanagem está no ar, e estão atentando contra a minha vida. Morador fala que a polícia fala…. alguma coisa está no ar. Se acham que vão me oprimir com denúncia caluniosa, estão ferrados. Tenho família, tenho filho, mas não estou aqui para ser estatística igual Marielle. Não compactuo com crime organizado. Não sou santo, mas não compactuo com vagabundo”, afirmou, enérgico, o vereador.
CARTA MISTERIOSA
Segundo relato de Torres, uma pessoa entregou na Câmara uma carta anônima endereçada a ele. Nela, anuncia-se uma suposta moradora do Sem Terra. O texto da carta diz que a PM, a mando de Torres, “esculacha” moradores, e pede que o vereador não ordene mais investidas dos policiais no local.
O presidente explicou que abriu o envelope e leu na presença de dois funcionários da Câmara. Ele releu a carta (que apresenta vários erros de português) durante a sua fala de abertura na última sessão.
O ATUAL reproduz aqui a leitura de Torres, na íntegra:
“Vereador Gil Torres, sou moradora do Sem Terra e soubemos através dos polícia que você mandou a PM invadir e tirar o movimento, mas queria pedir para você deixar tudo como está agora, porque está tudo calmo no bairro e eles esculacharam muito todo mundo aqui. Não sei porque mandou fazer isso, mas esculacharam muito morador e os PM ficaram falando que era mandato por você. Deixa tudo como está porque está tranquilo e não pede mais para vir não. Falaram que isso ia ser cobrado, mas vi no Face que você não mandou os PM entrar aqui. Estou avisando porque isso foi bom para cá, mas pede para os PM não esculachar mais moradores, não. Bateram nas pessoas e falaram que era porque o vereador Gil Torres mandou. Estou te mandando essa mensagem porque falaram que você vai cobrar”.
A Câmara, porém, não publicou no site oficial uma foto da carta misteriosa para acompanhar o texto sobre o assunto. Da mesma forma, Torres não a exibiu durante o seu discurso para que o vídeo com a gravação da sessão a captasse. Seria para não atrapalhar a investigação? Talvez.
É certo que, em busca da identidade do indivíduo que entregou a carta, as câmeras do circuito de vigilância da CMI devem ter captado o mensageiro e as gravações serão úteis. A investigação certamente se valerá destes registros. Possivelmente Torres ordenou que as gravações fossem mantidas em local secreto, mas, se o fez, não informou no seu discurso.
Gil Torres diz que já convocou as autoridades e pede que Cláudio Castro se sensibilize: “que o governador ouça isso e nos ampare”, pediu ele.
NOTEBOOKS ROUBADOS
Se a primeira CPI proposta por Torres é alarmante por motivos óbvios, a segunda que ele coloca em pauta é, no mínimo, instigante. Sem que nada tenha sido dito na primeira sessão legislativa do ano, o assunto “roubo dos notebooks da Secretaria de Educação” passou a ser prioridade somente a partir da segunda sessão, embora os fatos ainda sem explicação que cercam os equipamentos comprados com dinheiro público já estivessem na boca do povo – e nos feeds dos Facebooks – ainda em janeiro. Portanto, vários dias antes da sessão de abertura do ano legislativo.
Para quem ainda não sabe, os jornais da capital O GLOBO e EXTRA anunciaram, de uma forma um tanto capenga, que policiais do PROEIS de Itaguaí abordaram, no dia 20 de janeiro, um veículo suspeito e nele encontraram uma carga de notebooks que pertenciam à Secretaria de Educação de Itaguaí. Quantos foram roubados e quantos recuperados? O que disse o motorista? Que tipo de veículo era? Houve registro de ocorrência na delegacia? Quando e de onde foram roubados os computadores? – estas foram algumas perguntas que o ATUAL fez em uma reportagem (https://jornalatual.com.br/itaguai-o-misterio-dos-notebooks/) e que continuam sem resposta.
Embora a responsabilidade seja da prefeitura, compradora dos aparelhos, o legislativo decidiu somente agora que o caso deveria ser investigado. Isto, é claro, dá em que pensar, embora há sempre quem diga “antes tarde do que nunca”. O fato é que o presidente Gil Torres pediu aos colegas que aprovassem – como de fato aprovaram – a criação de mais essa CPI.
Isso coloca a relação entre o Executivo e o Legislativo em um novo contexto, porque faz pelo menos sete meses que a composição atual da Câmara não propõe e aprova sequer um requerimento de informações à prefeitura. Muito pelo contrário: rejeitou quase todos, exceto um ou dois protocolados no período. A unanimidade acabou? Só os próximos acontecimentos trarão uma resposta.
Nos bastidores políticos, o ATUAL apurou que há quem aposte em rompimento dos vereadores com o prefeito Rubem Vieira (Podemos). A CPI dos notebooks, para quem sustenta essa ideia, é uma evidência de que agora o parlamento municipal e a prefeitura não estão mais do mesmo lado, ou, para dizer de outro modo, na mesma vibe.
Mas não será difícil confirmar essa hipótese: caso a investigação sobre o roubo dos notebooks não convoque pessoas ligadas ao governo, a CPI pode cair em descrédito.
Gil Torres, porém, deu uma pista sobre futuras convocações da comissão. No seu discurso, ele citou páginas em rede social que teriam correlacionado o roubo a autoridades: “Fica esses ‘pela-saco’ no Facebook falando que autoridade tem envolvimento. Então quem fala vai ter que provar. Quem está na sacanagem vai ter que vir prestar esclarecimentos aqui. Que a empresa responsável pela zeladoria pague. Não vou me omitir”.
Pelo menos nesta fala, Torres dá a entender que o primeiro alvo é quem fala do governo, e não quem nele trabalha para zelar pelos bens públicos. Cabe lembrar que cada notebook custou cerca de R$ 5 mil, e que já foram entregues em comodatos aos professores pelo menos 1.517 deles, segundo dados oficiais.
Mas, para saber o que aconteceu, quantos notebooks foram roubados, quantos foram recuperados, onde estavam guardados e quem os vigiava, nada de esclarecimentos da prefeitura. Com a CPI, espera-se, as respostas virão à tona.
PRÓXIMOS PASSOS
Transmitir informações para a população e para a imprensa sobre o andamento das CPIs será um desafio que a Câmara precisará suprir com agilidade e profundidade, dadas as implicações e circunstâncias regimentais e jurídicas. Há motivos para crer que, hoje, essa dificuldade não seria superada.
Além disso, todo mundo quer saber quem ameaça o presidente da Câmara e quem roubou os notebooks, e em quais circunstâncias.
De acordo com o Regimento Interno da Câmara, o próximo passo é a indicação dos membros, que iniciarão os trabalhos após a publicação da composição das comissões, compostas de um presidente, um relator, um membro e dois suplentes.
Após a conclusão das CPIs o relatório é encaminhado ao judiciário para eventual punição.
O prazo para conclusão dos trabalhos é de 90 dias.
O ATUAL entrou em contato com a PMERJ e pediu uma nota sobre o assunto da primeira CPI, mas até o momento não recebeu resposta. Tão-logo a receba, será aqui adicionada.
Quem já estava ansioso pelas respostas que ainda não vieram acaba de ter que acrescentar mais algumas perguntas, dado o contexto que envolve a criação das comissões parlamentares de inquérito da CMI. Mas, em Itaguaí, a simplicidade nas tramas do poder ainda é uma meta imbatível.