‘Se arrumasse emprego, não teria sufoco’, diz bolsista da Rural
“Todo mês é uma surpresa”. Esta é apenas uma frase, dentre várias outras, da estudante Beatriz Silva em entrevista ao ATUAL que resume o sentimento de incerteza que toma conta há anos dos alunos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, e de outras instituições federais de ensino superior Brasil afora.
Tal incerteza se aflorou ainda mais em 2022, último ano do governo Jair Bolsonaro (PL), quando o Ministério da Educação, a pedido do Ministério da Economia, fez dois cortes no orçamento anual das universidades. Na Rural, por exemplo, foram R$ 4 milhões a menos em relação ao previsto para os 12 meses de gestão.
Ainda assim, os bolsistas do campus de Seropédica estão com seus benefícios em dia – janeiro já foi pago. No caso de Beatriz, de 22 anos, são R$ 400 mensais por estágio para alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica e mais R$ 250 a cada período por um auxílio didático-pedagógico.
Mas se hoje os compromissos da universidade com os bolsistas estão honrados, nem sempre foi assim. Beatriz lembra que em 2022 houve atrasos, o que a fez desabafar com aquela frase lá do início da reportagem.
ESTUDO X TRABALHO
Não à toa, muita gente deixou os estudos para tentar um emprego com carteira assinada, o que interrompe o sonho universitário, mas dá mais estabilidade financeira. A própria Beatriz já fez parte deste grupo – embora tenha se permitido sonhar novamente.
A Licenciatura em Geografia que a estudante cursa tem quatro anos de duração (oito períodos), mas ela já está nos alojamentos da Rural há cinco. Isso porque reprovou em algumas disciplinas por ter de se ausentar em busca de um trabalho: “Tive que borrar (faltar às aulas) porque estava trabalhando em uma loja de roupas. E como não tinha carteira assinada para comprovar, a universidade não permitia trancar a matrícula”.
Depois do trabalho na loja, Beatriz conseguiu um emprego como recepcionista, mas este com carteira assinada. Somadas, as jornadas profissionais duraram cerca de dois anos e meio, entre 2019 e 2021.
SONHO X SUFOCO
Depois desta fase, ela decidiu voltar aos estudos, mas ainda às voltas com aquela sensação de “surpresa”: “Essa insegurança gera uma série de problemas. É ruim para a saúde mental, que fica abalada. Você vê seus colegas sendo brilhantes, e você não tem as mesmas condições”, lamenta Beatriz, que faz parte do Correnteza, movimento estudantil que luta por melhores condições para os alunos.
Tanto que é comum ela pensar em voltar a procurar um trabalho: “Às vezes, penso que se arrumasse um emprego de carteira assinada seria melhor, não teria sufoco. Tem momentos em que nem vejo propósito nisso (fazer faculdade). Penso se seria melhor arrumar um bico em vez de priorizar aulas”.
SITUAÇÃO COMUM
E ela ressalta que não está sozinha na Rural ao estimar que 70% dos alunos da Rural convivem com uma condição de vulnerabilidade socioeconômica. Parcela esta que precisa fechar a seguinte conta: dividir os escassos auxílios que recebe por diversos gastos rotineiros.
Por exemplo, livros, impressões de textos, pacote de Internet (o wi-fi da UFRRJ não dá conta muitas vezes), produtos de limpeza e até alimentação: “O bandejão nem sempre funciona. Então temos que comprar alimentos também”, destaca Beatriz, que complementa a renda com mais R$ 400 do Bolsa Família – a mãe, com quem convive pouco, é muito humilde e não consegue ajudá-la financeiramente.
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Entretanto, apesar das incertezas e dificuldades ao longo dos últimos cinco anos, Beatriz acredita que seus últimos 12 meses na Rural – ela pretende se formar ao fim de 2023 – podem representar um pouco de estabilidade. E a esperança está na troca de comando do Governo Federal.
Mesmo que não espere mudanças imediatas, sua expectativa é positiva: “Espero a preservação do ensino público e, principalmente, da assistência estudantil, que é o que mantém o aluno na universidade”.
O QUE DIZ A RURAL
O ATUAL também fez contato com a UFRRJ para falar sobre a situação financeira da universidade. Um dos questionamentos foi sobre um vídeo de dezembro passado, no qual o reitor Roberto Rodrigues dá a entender que não honraria todos os compromissos – como os com fornecedores, por exemplo – ao falar em “pagar somente as bolsas dos nossos alunos. Todas as outras notas não serão pagas”.
Em resposta, o vice-reitor, o professor César Augusto Da Ros, alegou que Rodrigues se referiu apenas à preferência pelos bolsistas: “Ele quis dizer que a prioridade seria o pagamento das bolsas e auxílios aos estudantes. Ele não quis dizer que os fornecedores não seriam pagos”.
Ainda sobre os bloqueios orçamentários de 2022, o vice-reitor assegura que não houve cortes em serviços, bolsas ou auxílios na Rural. Para isso, explica ele, a estratégia foi a de não assumir novos compromissos, como editais e contratos.
Uma fonte chegou a contar à reportagem que alguns auxílios não abrem há algum tempo ou estão com poucas vagas. Por exemplo, o auxílio-creche teria aberto inscrição apenas para cinco pessoas.
Mas, segundo o vice-reitor, as cinco pessoas em questão, que conseguiram o benefício, foram as únicas que completaram a inscrição e atenderam aos critérios previstos no edital.
2023
Quanto ao ano que se inicia, se Beatriz tenta substituir a incerteza pela esperança, com a Rural não é diferente. A perspectiva é por um trabalho em conjunto entre o novo governo e as organizações que integram a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior).
O vice-reitor destaca que o objetivo é a “recomposição dos orçamentos das universidades federais, a patamares que possibilitem o pleno funcionamento das atividades de ensino, pesquisa e extensão, conferindo-se prioridade a manutenção dos programas de permanência estudantil, aos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica”.