Professor da Rural conta como é expor na França

Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, ele leciona disciplinas como planejamento urbano e regional e habitação de interesse social. Já na França, é autor de uma obra de arte que tem dado o que falar. Assim é possível resumir o atual momento do professor Humberto Kzure-Cerquera.

Assim que soube da empreitada, o ATUAL entrou em contato com o docente para conversar sobre a experiência que durou cerca de cinco semanas. Desde a chegada em território francês, no início de janeiro, até a estreia de “Asikiri – départs forcés”, instalação artística e arquitetônica que retrata travessias perigosas e forçadas pelos oceanos.

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“Asikiri” – termo da língua iorubá usado para designar os migrantes – fala do risco à vida de quem cruza os mares em condições que estão a léguas de serem as ideais. Para isso, traça um paralelo entre os séculos de escravidão legalizada, quando negros eram transportados em condições sub-humanas em navios, e as pessoas que têm deixado, sistematicamente, os seus países como refugiados por razões como guerras civis e perseguições políticas, dentre outras.

O resultado, um barco de sete metros de comprimento feito de lâminas de isopor para construção civil, está exposto no Centre Intermondes da cidade de La Rochelle, de segunda à sexta, das 14h às 18h (horário local), com entrada franca, até o próximo dia 23.

O palacete do fim do século XIX onde fica a sede do Centre Intermondes La Rochelle (Arquivo pessoal)

Diante da boa repercussão, o professor já tem até ouvido sugestões para onde a obra deveria ir ao fim do período de exposição: “A prefeitura de La Rochelle pensou em colocá-la em espaço público, mas ainda não tem nada certo”, salienta Humberto, o primeiro brasileiro contemplado com uma bolsa para uma residência acadêmica e artística no Centre Intermondes La Rochelle, via Etnopôle Humanités Océanes do Ministério da Cultura da França.

A propósito, os custos com a viagem e a produção da obra também ficaram com o Centre Intermondes – cuja sede fica em um imponente palacete do fim do século XIX, onde Humberto ficou hospedado e foi recebido pelo diretor Edouard Mornaud. Mas a Rural, onde Humberto trabalha há 15 anos, também teve sua participação.

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Além da liberação dos compromissos profissionais em prol da jornada europeia, o professor destaca que a universidade lhe abriu essa porta por conta de uma conduta recente que a tem tornado “bastante visionária em relação a trocas com outros centros produtores de conhecimento”.

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

1 – Como surgiu o convite para levar a instalação para a França?

Eu já havia feito uma parte do meu pós-doutorado na universidade de La Rochelle. Preparava um longa chamado “Cidade de Portas” (lançado em 2022), sobre o urbanista português Nuno Portas. Foi quando o Laurent Vidal, presidente do Centre Intermondes, me fez o convite, pois já conhecia minha trajetória não só na arquitetura e no urbanismo, mas também nas artes visuais. E me perguntou sobre o que eu abordaria na obra. E os deslocamentos forçados me preocupam muito. As pessoas que circulam sem nenhuma segurança pelo Mar Mediterrâneo, o que gera acidentes, quase sempre, com inúmeras vítimas.

O professor, há 15 anos na Rural, passou cinco semanas na França para a produção de sua obra (Milousa António)

2 – Mas também há uma alusão à escravidão, não é?

Sim, outro diálogo da obra é com o passado dos navios negreiros que chegavam não só ao Brasil, mas às Américas. Inclusive, o antropólogo francês Jean-Michel Beaudet e Katia Kukawka, diretora adjunta do Museu d’Aquitaine de Bordeux, me disseram que esse projeto deveria ser materializado em espaços públicos nas seguintes cidades: Salvador e Rio de Janeiro, pelo histórico de desembarque de navios negreiros escravos. E também nas francesas Nantes, La Rochelle e Bordeaux, que se beneficiaram e enriqueceram com o mercado escravagista.

3 – Sim, tem sido comum ver no noticiário tragédias com embarcações em péssimas condições na Europa. Mas com refugiados…

É importante levar esse debate para o continente europeu. Três ou quatro dias depois do vernissage (encontro prévio à inauguração de uma mostra de arte) aconteceu um acidente com pessoas que iam do Irã e do Afeganistão para a Itália. Vitimou 42 pessoas. A travessia para a Europa representa uma fuga da fome, de guerras, de perseguições. E nada impede que depois que estiverem devidamente inseridas na sociedade, essas pessoas sejam vitimadas pelo racismo, pela invisibilidade…

Um dos detalhes da obra é uma espécie de cordão umbilical que conecta os imigrantes com seus locais de origem (Arquivo pessoal)

4 – E algum episódio específico serviu de gatilho para o senhor criar a instalação?

Não. Esse assunto já vem me preocupando desde o pós-doutorado, que fiz também nas universidades Têcnica de Viena e Porto, além de La Rochelle. Eu já vinha acompanhando os fluxos migratórios de várias maneiras. O Mar Mediterrâneo com um grau de insegurança absurdo.

5 – Dê um exemplo de um obstáculo que aumente esse nível de insegurança?

A máfia dos coiotes, que são aqueles que, em troca de dinheiro, entregam um barco à própria sorte daqueles que vão conduzi-lo. São migrantes também, com a diferença de que não pagam a viagem, mas não têm experiência [na condução]. Enquanto não aparece uma oportunidade como essa, eles passam dias na mata. Até ratos comem para sobreviver. E quando chega o barco, trata-se de um campo de incerteza.

As duas torres medievais da entrada marítima de La Rochelle foram representadas na obra de Humberto Kzure-Cerquera (Arquivo pessoal)

6 – Fale um pouco mais sobre a instalação?

Construí a maquete ainda no Brasil para que me auxiliasse lá. O meu olhar tinha a ver com uma espécie de cemitério que vai se formando nos oceanos em decorrência de tantas mortes. E nem todas chegam ao conhecimento público. Trata-se de um barco negro, feito em lâminas, que procura reforçar esse ato dos corpos e almas que sobrevivem, apesar dos rastros de sangue deixado nos mares. O barco tem sete metros de comprimento. E fica propositalmente entre duas colunas. É uma alusão à entrada de La Rochelle, que tem duas torres.

7 – E os materiais usados? 

Plástico, tinta, tecido de filó e isopor para construção civil. A escolha por esse material foi por ser mais flexível e mais barato. Originalmente seria em madeira, mas o custo ficaria muito elevado.

A vernissage da obra: um barco negro com sete metros de comprimento feito com lâminas de isopor para construção civil (Arquivo pessoal)

8 – Além do barco, o que mais os visitantes podem conferir na instalação?

Temos uma compilação de depoimentos de imigrantes em áudio (programado para determinado momento da visitação). Há ainda uma parte escrita que descreve o processo de agonia que move todos eles – uma alusão a manuscritos

 O francês Didier Mayerfeld, membro do “Solidarité Migrants”, é um dos responsáveis pelo acolhimento dos imigrantes em La Rochelle. Foi ele quem possibilitou a aquisição de depoimentos dos imigrantes africanos que, em geral, não gostam de falar desse assunto traumático.

E também uma música, chamada “Aquavodaplay”, da autora carioca Fernanda Metello, que traz uma atmosfera de desespero e remete aos movimentos marítimos.

9 – Que comentários ouviu depois de lançar a obra?

Os refugiados choraram pelas incertezas e perigos que viveram. Um disse que quando viu o barco foi como se estivesse diante de um túmulo. Mas como eu estava muito envolvido em finalizar o projeto, não consegui tantos registros. Mas as pessoas se emocionaram, sim.

10 – Espera estar abrindo portas para outros professores brasileiros?

Sem dúvida. Um dos motivos pelos quais a Rural me liberou é o fato de ela estar com um projeto de internacionalização da universidade, que está bastante visionária em relação a trocas com outros centros produtores de conhecimento. Mas os professores também precisam se movimentar sobre suas proposições, sobre como refletir diante da complexidade do mundo contemporâneo. Também sou membro do Projeto África Habitat, sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), que fala de moradia, arte e cultura. Nesse trabalho, somam-se os seguintes países: Angola, Brasil, Moçambique e Portugal.

11 – Qual é o futuro da instalação após o fim da exposição no próximo dia 23?

Há planos para que seja levada a outro museu na França. Já a prefeitura de La Rochelle pensou em colocá-la em espaço público, mas ainda não tem nada certo. Por enquanto, é o que eu sei.

Luiz Maurício Monteiro

Repórter com mais de 15 anos de trajetória e passagens por diferentes editorias, como Cidade, Cultura e Esportes.

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